35mm de saudade



“É para não ficares com fome”, dizia ela. Preocupava-se sempre comigo. Além disso, trinta escudos era um dinheirinho razoável. Dava, pelo menos, para comprar uma casada e um copo de sumo na cantina do Liceu. Porém não era o que fazia. É claro que minha mãe não sabia como utilizava o dinheiro. Pelo menos não o soube durante algum tempo, pois não poderia esconder a verdade para sempre. Mas não a pus, tão cedo, a par de minhas intenções. Ela não iria compreender. Os miúdos da minha idade talvez compreendessem. Falo dos da minha idade, na época. É que os miúdos de agora não têm o prazer de viver o que nós vivemos nessa altura. Nosso brinquedo preferido era uma bola de borracha. Uma bola em cautchouk (bola de cómpe chute, como nós a conhecíamos) não estava ao alcance de todos. Tive a oportunidade de ter alguns brinquedos de pilhas porque meu pai era emigrante, e trazia-nos, a mim e aos meus irmãos, alguns brinquedos excepcionais a pilhas, com muitas luzes e sinais sonoros. Muitos de meus amigos contentavam-se com aviõezinhos que voavam com a ajuda de um elástico em forma de forquilha. Oxalá os meninos de hoje nem sequer saibam o que é uma forquilha.

Hoje em dia, se oferecermos a uma criança de dois anos uma boneca, com alguma sorte pergunta onde é que se colocam as pilhas, pois se não for aquela Nenuco que viram na publicidade da TV, a boneca não presta. Um miúdo de dez anos que recebe uma bicicleta de presente é capaz de perguntar quantos gigabytes de memoria tem e qual a velocidade do processador da bicicleta. Num mundo globalizado, com muitos Playstation, CD, DVD, Internet, Blueray, HDTV e outras complicações tecnológicas, um miúdo não iria compreender que preferia ficar com fome e guardar o dinheiro para ir ao cinema. Já nem sequer há um cinema no país.

Eu acostumava guardar trinta escudos para ver o filme na “geral” e outros vinte escudos davam para um “pôm de trança c’doce”, posteriormente chamada de sweetburger. Mas para satisfazer esse vício tinha que juntar os vários trinta escudos destinados ao lanche da cantina. Uma espécie de caixa dois.

Filmes de qualidade? Nem sempre. Uma vez cheguei a levar uma valente paulada de um polícia, fruto de uma botchada no Cine-Miramar, o cinema de Tuta, que viria a transformar-se em Igreja Universal do Reino de Deus. Hoje o edifício está a degradar-se, como se um importante trecho de nossa história desaparecesse. O pior é que não era mais do que um filme de Chao-Lin. Muitas vezes comprei bilhetes pelo dobro do preço para ver filmes indianos com o então famoso Amitab Bachen. O Éden-Park era então o cinema dos filmes de qualidade. Sempre o foi e continuou até o final de seus dias. Não que não houvesse um “purgante” pelo meio. Fui criando com esse hábito de cinema e tornei-me num cinéfilo declarado. Cheguei até a pertencer a um clube de cinema. Veio o Betamax, veio o VHS e mais tarde o DVD, mas o cinema em celulóide estava sempre aí. 35mm que se transformavam num enorme ecrã. O ecrã que nos levava a convidar as pequenas e, muitas vezes, dando origem aos históricos primeiros beijos, roubados no mais escuro cantinho da plateia ou da bancada. Isso sem esquecer os inúmeros comentários, sussurros, gargalhadas, e demais exclamações e sentimentos provocados pelas cenas que os filmes nos proporcionavam. Era uma época em que todos que a viveram se orgulham, inclusive de ter levado de manduque.

Hoje só resta essa saudade, uma saudade que dói e que me comove. Saudades de levar a pequena ao cinema, a pequena que já é mais que pequena. Saudades de ver sessões duplas sem se cansar. Saudades de sentir o traseiro dorido por ver filmes tão extensos como “Ghandi”, “Danças com lobos” ou “O Senhor dos anéis”. Saudades de partilhar com meus filhos a magia da Disney em ecrã gigante e viver as aventuras do Rei Leão ou dos Incríveis. Saudades de ouvir aquele som surround misturado com o incessante estalar das cascas de mancarra. Saudades das bocas e das piadas que acompanhavam o filme. Uma saudade que marca e me amarra ao passado. 35mm que posso não ver mais. 35mm de um mar de saudade. Com certeza, uma saudade que só quem a viveu compreenderia.

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